Governando para poucos? Como falta de legitimidade pode prejudicar o compliance e a cooperação em países da América Latina

21 de May de 2019

*Luis Felipe López-Calva

Você acha que seu país é governado tendo em vista o interesse de meia dúzia de grupos poderosos ou é governado para o bem de todos? Segundo dados de percepção do "Latinobarómetro", de 2018, 79% dos cidadãos de países da América Latina acreditam que seus países são governados tendo em vista o interesse de poucos grupos poderosos. Esse é percentual mais elevado desde que teve início a coleta desse dado, em 2004. Em países como Brasil e México, esse número chega a 90% e 88%, respectivamente.

A crescente e disseminada crença de que os países são governados em benefício de poucos ao invés de muitos sugere que a legitimidade das instituições pode estar em declínio na região. Podemos pensar em três fontes de legitimidade: legitimidade de resultados, quando um governo é confiável no cumprimento de seus compromissos, como a entrega de serviços públicos de qualidade; legitimidade processual ou baseada em processos, derivada de percepções de justiça pela forma como decisões, políticas ou leis são concebidas e implementadas; e a legitimidade relacional, pela qual indivíduos reconhem a autoridade encorajados por um conjunto compartilhado de valores e normas.

No gráfico 1, o que vemos é possivelmente a erosão da legitimidade procesual. Por que a legitimidade processual importa para o desenvolvimento? Porque, quando as pessoas acreditam que as regras são justas, elas são mais inclinadas a cumpri-las voluntariamente. O cumprimento voluntário das normas é chave para a cooperação e a coordenação e, portanto, uma base importante de uma dinâmica positiva entre governança e desenvolvimento. Como explicado por Margaret Levi, "... os cidadãos estão inclinados a concordar com uma política que eles não apreciam se ela é formulada em conformidade com o processo que eles consideram legítimo, e estão menos inclinados a concordar com uma política que eles apoiam se o processo (dessa política) foi problemático".

Uma medida amplamente utilizada para aferir a intenção de cidadãos é a "moral tributária". Uma vez que os ganhos da evasão fiscal são elevados se comparados aos custos potenciais (penalidades, por exemplo), as pessoas decidem se pagam impostos ou não. Essa decisão pode ser afetada pelas percepções da legitimidade processual, isto é, se perceberem que o sistema tributário é justo, tanto em termos de como os impostos são recolhidos quanto de como são gastos (também por considerações estratégicas relacionadas com a presença de penalidades, mas vamos deixar isso de lado por enquanto por uma questão de argumentação).

O Gráfico 2 tem o objetivo de desvendar a situação em alguns países da América Latina, usando dados do "Latinobarómetro", que pergunta aos cidadãos "quanto você acredita ser justificável sonegar impostos?". Os entrevistados respondem em uma escala de 1 ("nem um pouco justificável") até 10 ("totalmente justificável"). No gráfico, a parcela de pessoas que responderem acima de 5 é mostrada como aqueles que pensam ser "justificável" não pagar os impostos. O que vemos é que, enquanto a maioria dos cidadãos em todos os países demonstram discordar da ideia de sonegação fiscal, há uma relação clara e indubitável entre a parcela de pessoas que pensam que seus países são governados em prol do interesse de poucos grupos poderosos e a parcela que pensa ser justificável sonegar impostos.

Se os cidadãos não acreditam que as instituições atendem às necessidades de todos, eles podem escolher não cooperar. Podemos pensar nisso como uma "auto-exclusão" do contrato social. Isso também pode se materializar na escolha por serviços privados, como educação e saúde. Na América Central, por exemplo, há três vezes mais seguranças privados do que o número de policiais. Esse tipo de "saída" tem consequências para a coesão social entre os grupos e pode potenciamente levar a conflitos quando a  estabilidade do contrato social se desgasta. A frustração eclodiu, por exemplo, durante os protestos de 2013 no Brasil, em antecipação à Copa do Mundo da FIFA de 2014. As exigências dos manifestantes pelo "padrão FIFA" também para as escolas públicas e centros de saúde pode ser vista como um reflexo da crença de que o dinheiro público estava sendo gasto injustamente no interese de poucos poderosos ao invés de ser gasto no interesse coletivo de muitos.

Agora, o que os formuladores de políticas podem fazer para melhorar essa dinâmica? Um bom ponto de partida para promover a legitimidade processual é melhorar "ex ante" os mecanismos de prestação de contas, criando um processo de partipação mais inclusivo ou participativo que seja responsável pelas demandas do cidadão comum. Em outras palavras, expandindo a arena política, que é onde as assimetrias de poder se manifestam. Embora isso seja fácil de falar, é difícil de fazer – especialmente dada a histórica inércia das instituições e a distribuição de poder na sociedade. As "instituições extrativistas" criadas na América Latina há séculos ainda têm impacto sobre desigualdades, níveis de renda e disparidades raciais. Entretanto, isso não significa que a mudança seja impossível. Mudanças graduais, como ampliar o espaço de questionamento da arena política, permitindo que a voz de mais cidadãos possam ser ouvidas, é crucial para se traçar o caminho rumo a um novo equilíbrio tanto para a governança quanto para o desenvolvimento.

* Conferir: "Repensando a Confiança e a Legitimidade: uma abordagem funcionalista" (2016), de Luiz López-Calva e Samantha Lach, para uma discussão mais profunda sobre os diferentes tipos de legitimidade, incluindo a legitimidade de resultados e a legitimidade baseada em relações.