Sistema bancário precisa se reinventar para incluir mais pobres, diz criador do microcrédito

8 de July de 2021

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O sistema bancário global precisa incluir os mais pobres no acesso ao crédito, de forma a apoiar a erradicação da pobreza e a redução as desigualdades, incentivando o empreendedorismo. Tal mudança é ainda mais essencial e oportuna em um momento de crise socioeconômica provocada pela COVID-19.

A avaliação é do economista bengali Muhammad Yunus, vencedor do Nobel da Paz de 2006 pela criação do microcrédito e pela fundação, em 1976, do Grameen Bank, instituição financeira inovadora por dar financiamento sem necessidade de garantia a pessoas pobres em situação de vulnerabilidade, especialmente mulheres.

Dados de janeiro de 2021 apontam que o Grameen Bank tinha 9,38 milhões de clientes, 97% deles mulheres. Com 2.568 agências, a instituição autossustentável opera em mais de 81 mil vilarejos de Bangladesh, com empréstimos que somam US$ 3 bilhões anualmente. Também tem operações no exterior com organizações parceiras, focadas em microcrédito.

Na quarta-feira (7), Yunus participou ao lado do diretor regional do PNUD para a América Latina e o Caribe, Luis Felipe López-Calva, e do presidente-executivo do Santander Brasil, Sérgio Rial, do evento online "O empreendedorismo como agente de transformação".

“Em 1976, tivemos um problema sério de fome em Bangladesh. Nesse período, comecei a lecionar Economia na universidade, depois de voltar dos Estados Unidos. Ensinava teorias elegantes, mas via pessoas morrendo de fome. Foi aí que fiz a promessa de que, se eu conseguisse me fazer útil para uma pessoa todos os dias, eu seria feliz”, contou Yunus.

Na época, o economista visitou vilarejos para analisar as reais necessidades das pessoas. Percebeu, então, que a maioria era vítima de agiotagem. Teve a ideia de fazer pequenos empréstimos do próprio bolso, mas sem os juros elevados do crédito predatório. Verificou que a inadimplência era extremamente baixa, porque recebia de volta o dinheiro emprestado.

“Isso me tornou popular e, quanto mais popular eu me tornava, mais feliz eu ficava. Nesse meio tempo, enfrentei polêmicas em Bangladesh porque comecei a atravessar o sistema bancário, e isso se tornou um conflito. Acusei o sistema bancário de ser projetado só para os ricos. Os bancos emprestavam só para quem já tinha dinheiro”, declarou.

Em 1983, o empreendimento recebeu autorização para operar como instituição financeira independente, e todo o superávit era revertido para a própria organização. “No meu banco, atuamos da maneira oposta à do sistema bancário. Emprestamos para as mais pobres. Isso é parte da nossa prática”, disse.

“Bancos convencionais exigem que as pessoas se dirijam até eles. Nós fazemos o oposto, vamos até as pessoas. (...) O mais importante é que não exigimos nada, enquanto os bancos tradicionais não emprestam sem garantia. Essa é a barreira que impede as pessoas mais pobres de acessá-los. A não ser que derrubemos essa muralha, não vai funcionar.”

Yunus é um entusiasta do empreendedorismo entre os mais pobres como uma alternativa aos empregos tradicionais, desde que haja acesso fácil a crédito barato. “Todos os seres humanos nascem empreendedores, mas vão para a direção do emprego, que tira a capacidade criativa. Temos capacidade criativa infinita, mas, quando aceitamos um emprego, estamos abrindo mão dela, porque passamos a seguir ordens.”

“Acho uma pena, porque o ser humano criativo é transformado em um robô. O sistema educacional está errado, por ensinar os jovens a serem empregados e não empreendedores. É por isso que focamos nosso trabalho também nos jovens de Bangladesh, de forma a conscientizá-los de que não é necessário procurar emprego, mas criar um negócio.”

O economista bengali alerta que o sistema financeiro global não dá o “oxigênio” necessário para impulsionar o empreendedorismo entre os mais pobres. O resultado são altas taxas de desemprego. “Na pandemia, isso se tornou ainda mais sério. Muitas pessoas perderam o emprego. Precisamos de mudanças no sistema bancário para que este não atenda os ricos, mas as pessoas que possam se tornar empreendedoras.”

A opinião é compartilhada pelo diretor regional do PNUD, segundo o qual o próprio conceito de empreendedorismo se refere à melhor alocação de recursos de forma a ampliar seu valor social. “Tais empreendedores podem contribuir para a prosperidade de comunidades e sociedades, mas, atualmente, estão excluídos do sistema bancário”, salientou.

“Nesse sentido, o papel dos órgãos multilaterais (como as Nações Unidas) é ajudar governos a criar regras melhores para o sistema. Não somos intermediários financeiros, mas podemos ser ‘corretores de ideias’”, declarou. “A realocação (mais justa) de recursos está no cerne da nossa noção de prosperidade, crescimento e desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo.”

López-Calva disse ainda que os pequenos atores econômicos podem ser mais sustentáveis ambiental e economicamente, enquanto as micro e pequenas empresas latino-americanas e caribenhas são importantes geradoras de empregos. “Elas terão papel fundamental na recuperação econômica após a pandemia, que atingiu nossa região de forma mais severa em termos de saúde e economia.”

Relatório global do PNUD apontou em maio que a crise sanitária e socioeconômica provocada pela COVID-19 deve afetar com mais intensidade o desenvolvimento humano nos países de renda baixa e média, menos capazes de lidar com as consequências da pandemia na comparação com as nações mais ricas. 

A América Latina e o Caribe enfrentam desafios particulares, por terem sido uma das regiões mais afetadas pela crise. O mandato do PNUD na região está focado em impulsionar o desenvolvimento socioeconômico inclusivo e apoiar o desenvolvimento humano sob um olhar multidimensional.

O presidente-executivo do Santander, Sérgio Rial, declarou que a instituição financeira de origem espanhola tem apostado nas microfinanças. Seu programa Prospera está presente em 1,6 mil municípios brasileiros, com 600 mil clientes e R$ 5 bilhões em empréstimos concedidos. “Mas isso ainda só alcança uma pequena parte do país e da população brasileira”, ressalvou.

“Somos a maior operação de microfinanças de uma entidade privada no Brasil. Isso é bom, mas temos espaço para outros atores. É um setor no qual as instituições financeiras precisam fazer a diferença”, disse, citando dados de estudo do PNUD segundo o qual os clientes do microcrédito têm taxa de sobrevivência melhor do que a dos clientes convencionais.

O evento foi concluído com um tom positivo por parte de Yunus, que se declarou um “otimista compulsivo”. “Acredito que a situação vai melhorar. A pandemia foi um desastre, mas é uma oportunidade histórica de não retornarmos a esse mundo suicida de aquecimento global e concentração de renda”, disse.

“Enquanto as pessoas têm pressa em voltar para onde estávamos, eu grito que nossa decisão agora deve ser uma só: não voltarmos para o mundo que deixamos. A pandemia parou o trem que estava nos levando à morte iminente”, alertou. “O trem parou, o motor parou, e isso nos dá uma tremenda chance de sairmos e procurarmos um novo trem que nos leve a uma nova direção”, concluiu Yunus.